- Democracia e eleições
Hoje é muito comum falar de “qualidade de democracia”. Tal conceito parte de dois pressupostos fundamentais: que as democracias não são todas iguais, tendo estágios de desenvolvimento diferentes, traduzindo-se em graus diferentes de qualidade; e, que é possível mensurar essa qualidade.
Na verdade, se atendermos aos dados da Freedom House, poderemos observar que, se em 1990 tínhamos 69 países considerados por essa organização como democráticos, num total de 167, já em 2015 os países democráticos tinham passado para 125, num total de 195 (o que daria um incremento percentual de 23% nas democracias mundiais). Porém, desde 2015 até à atualidade, a mesma Freedom House, tem observado um declínio do que se chama “liberdade global”, com o aumento dos países considerados “parcialmente livres”.
Morlino[1] designa estes regimes de “híbridos”, em que junto às instituições, formalmente, democráticas coexistem práticas autoritárias em que, fundamentalmente, se procura diminuir a capacidade das oposições de chegarem ao poder político, manietando-as de diversas maneiras, mas sempre com o objetivo de impedir a alternância do poder político. Evidente, que para aprofundarmos estas questões teríamos antes que nos dedicar à definição do que é democracia, algo que está notoriamente, fora do âmbito desta exposição. No entanto, poderemos aqui entender a democracia total como um ideal a alcançar, que nunca está plenamente realizado e que se mantém como uma meta a atingir.
A democracia moderna aparece indissociavelmente ligada à questão da representação, e se podermos enveredar por uma definição de democracia como a de Schumpeter, que a diz como, simplesmente, um método de escolha de cargos entre as elites que se mostrem disponíveis para serem eleitas, assim pode-se articular com uma visão menos enfática na escolha dos cargos políticos.
De fato, alguns autores pensam que existe uma ideia errada, que dá uma preponderância exagerada às eleições, nos processos democráticos. É que uma democracia não se mede apenas pela qualidade do processo eleitoral, mas por um conjunto de fatores vários que terão que concorrer. É nesta linha que Robert Dahl, na sua conhecida obra “Poliarquia: participação e oposição”[2], afirma que, a par das eleições, existem outras condições para que exista uma democracia real (como por exemplo, a liberdade de informação, cidadania real, liberdade de reunião, etc.).
Realce-se, que ao contrário das democracias antigas, como a ateniense, as modernas, firmam-se sobretudo na representação, embora possam ter elementos de participação direta como referendos, consultas públicas, orçamentos participativos, etc. Portanto, assente que as eleições não são o único requisito para se considerar determinado regime uma democracia, certo é que ela é um de seus elementos preponderantes.
A relação mais direta entre democracia e responsabilidade política faz-se por via das eleições. Os eleitos “prestam contas” não só dos recursos aplicados nas campanhas, como também das políticas propostas ao eleitorado. No entanto, esta prestação de contas muda consoante o regime que abordamos. Isso nos mostra o estudo de Cheibub e Przeworski (1997)[3], quando comparam regimes presidencialistas e parlamentares quanto à alternância no poder, por via eleitoral. Vejamos:
[…] se nos regimes parlamentaristas em cerca de um sexto do tempo o chefe do governo não é alguém que tenha sido eleito como tal, no presidencialismo em três quartos do tempo o chefe do governo é alguém que os eleitores não podem reeleger, mesmo que eles o queiram. Se esta é a razão para que observemos tão pouca responsabilidade política nas democracias, não sabemos. Mas é certo que o elo entre democracia e eleições é menos do que definicional. (Cheibub, Przeworski ,1997)
De toda forma, será importante reforçar que as eleições são um ponto fulcral das democracias modernas. E isso acontece, quer por razões procedimentais da própria democracia, quer por aspectos menos tangíveis do nível sociopsicológico dos eleitores[4].
2. O processo eleitoral no Brasil
Linz e Stepan (1996)[5], a propósito da terceira onda de redemocratização da América Latina dos anos 80 e 90 do século XX, trouxeram para a ribalta da discussão política a questão da relação direta entre a qualidade do processo eleitoral e a qualidade de todo o processo democrático. A propósito desta relação, Pippa Norris[6] aprofunda o conceito de “Integridade Eleitoral” (Perception of Electoral Integrity-PEI), que é utilizado por autores como Vinicius Menezes, Marina Cotias e Danielle Freire[7], para aferir a qualidade do processo eleitoral em diversos países da América Latina. O estudo apresentado na “Revista de Estudos Eleitorais” em 2018, apresenta, de um modo geral, para os países sul-americanos estudados, que as eleições representam um fator importantíssimo, diríamos que decisivo, para o aumento da qualidade da democracia, nesses espaços.
Vejamos o gráfico de PEI que os autores nos apresentam:
(Retirado de: Rev. Estud. Eleit. Recife, V.2, Número 3, p.37, jul.2018)
Sobre o Brasil, os autores concluem que desde os anos 70, a qualidade dos processos eleitorais foi sempre subindo, apresentando ótimos resultados neste aspecto a partir dos anos 90. Porém, descrevem que no período de 2004 a 2010 apareceram diversas denúncias de corrupção, compra de votos e de abuso de poder por parte de algumas instituições, que mancharam este percurso.
Como abordamos incipientemente acima, a democracia moderna assenta sobretudo na representação. Como dirá Ferreira Filho: “No século XVII inventou-se a democracia indireta ou representativa. Nesta o povo se governaria na medida em que escolhesse, em eleições livres, representantes que em seu nome e lugar deliberassem” [8]. Aliás, eleições e liberdade são inseparáveis, dado que os processos eleitorais em regimes autoritários não passam de “encenações” em busca de legitimidade política. A expressão do povo pelo voto é “ponto alto” das democracias representativas, embora, como já vimos, não o único que define a própria democracia.
No Brasil, a partir da Constituição de 1988, definiu-se, no Título II, o direito de participação política dos cidadãos como parte integrante dos direitos chamados de “primeira geração”. Note-se, no entanto, que diversos autores[9] apontam que na sociedade brasileira os direitos adquiridos foram-no de uma forma pouco ortodoxa e invertida em relação, ao que diversos autores, dos quais se destaca Marshall descrevem, em diversas sociedades. Assim, os direitos brasileiros constituídos, começaram pelos direitos sociais e só mais tarde se estenderam aos direitos políticos. De fato, foram os direitos sociais os primeiros a serem implementados no Brasil numa época de cerceamento dos políticos e civis. Mais tarde foram os direitos políticos alargados, com a expansão do direito de voto, curiosa e quase que contraditoriamente, numa altura em que as instituições democráticas eram quase só de aparência, para tentar dar aparência de normalidade democrática.
A Constituição de 1988, muitas vezes é designada por “Constituição Cidadã”, que estabelece, sem margem para dúvidas, no seu Artigo 14, que a vontade popular se expressará por sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. Sendo o voto obrigatório[10].
Não caberá neste espaço, uma reflexão sobre a evolução histórica do processo eleitoral no Brasil, mas poderemos dizer que a primeira eleição no território brasileiro se deu em 1822, com a eleição de deputados às Cortes de Lisboa, num corpo eleitoral bastante restrito. Essas restrições à capacidade de votar continuaram por largos anos e só em 1861, pela Lei Saraiva, ainda do Império, se vê necessidade de alargar o conjunto de votantes, mas muitas pessoas continuaram excluídas[11]. No entanto, pela primeira vez, o voto era direto.
Com a implantação da República a eleição para Presidente alargou ainda mais o corpo eleitoral, mas continuou a exigir-se a alfabetização, afastando grande parte da população do direito de votar. Foi com a Constituição de 1932 que as mulheres puderam, pela primeira vez, votar, e foi justamente em 1932, que foi aprovado e publicado o Código Eleitoral (cria-se a Justiça Eleitoral), considerando muitas das recomendações de Assis Brasil; destacado por seus estudos sobre o modelo eleitoral a aplicar no Brasil, de onde sobressaem as ideias de voto nominal e listas abertas, a aplicação de um critério de proporcionalidade para a escolha dos representantes e da necessidade de um sufrágio universal, entre outras. Somente em 1985 por Emenda Constitucional (EC25) foi permitido o voto aos analfabetos.
Conclui-se do exposto, que fica evidente que as regras do processo eleitoral definem, em muito, a qualidade da democracia. Não é indiferente, do ponto de vista político, o universo dos que vão votar, quem pode candidatar-se aos lugares e em que circunstâncias, se os candidatos podem ser votados nominalmente ou em listas, se as listas são abertas ou fechadas, enfim não é indiferente como são definidas as circunscrições eleitorais, etc. Por outro lado, é importante que todos cumpram as regras estabelecidas. Tudo terá um impacto no resultado final e por isso a Justiça Eleitoral tem um papel crucial em todo o processo eleitoral. O Direito Eleitoral começa, no Brasil, pelas Ordenações Manuelinas e hoje espelha-se nos Tribunais Eleitorais. Na prática, o Direito Eleitoral brasileiro contemporâneo assenta num tripé fulcral: Constituição, Legislação complementar e decisões do Tribunal Superior Eleitoral – TSE (jurisprudências).
Para que a eleições sejam, de verdade, a expressão da vontade do povo, norma máxima da democracia, elas terão que ser representativas, no sentido da sua legitimidade e legalidade. Eleição é sobretudo a possibilidade de renovação e alternância, daí que tudo o que obste a esta possibilidade, enviesa o espírito democrático – daí as críticas ao instituto da “reeleição”. No sistema brasileiro, pela Emenda Constitucional 16/97, são reelegíveis – embora por apenas mais um mandato – o Presidente da República, os Governadores de Estado e do Distrito Federal e os Prefeitos. Quer-se dizer, os cargos executivos, eleitos por sistema majoritário, poderão ser reeleitos.
O processo eleitoral brasileiro pode ser considerado como complexo, não só pelas normas regulatória esparsas, como também pela variedade e quantidade de envolvidos neste enorme país. Nas eleições municipais de 2016 (dados retirados do site do Tribunal Superior Eleitoral[12]), tivemos: numa população superior a 204 milhões, foram mais de 143 milhões os eleitores e de 26.000 candidatos pertencentes a 35 partidos políticos diferentes. Existiram quase 97.000 locais de votação, em mesas onde estiveram presentes quase 2,5 milhões de mesários, com mais de meio milhão de urnas eletrônicas, que tiveram cerca de 49 milhões de votantes com dados biométricos. Estes números impressionam pela sua grandeza, mas os trabalhos preparatórios para o ato eleitoral são com certeza ainda mais relevantes.
Nesta dimensão e com as especificidades do sistema político brasileiro, como tornar o processo eleitoral inclusivo, confiável e verdadeiramente representativo? Autores como Fernandez Segado e Pedicone de Valls[13] apresentam as condições necessárias para que um processo eleitoral seja considerado de qualidade. Consideram que os diversos agentes do sistema político devem preencher alguns requisitos: os partidos políticos devem estar organizados e possuírem estruturas próprias; as regras do jogo do poder devem estar bem definidas e aceites por todos, sobretudo pela sociedade civil; um poder judiciário independente para balizar e interpretar a legislação correspondente; e uma Administração Pública isenta que possa levar a cabo a organização das próprias eleições.
É fácil assim entender que a organização do processo eleitoral depende muito das estruturas políticas de cada país e da forma como cada um se organiza para cumprir este importante desiderato. Pedicone de Valls identifica na América Latina três tipos diferentes de organização do processo eleitoral. No Equador e Bolívia estabeleceu-se um organismo superior que congrega em si todas os aspectos do processo eleitoral; nos casos do México, Chile e Colômbia optou-se por separar em dois organismos o processo eleitoral, um que trata dos aspetos organizacionais práticos e outro com funções jurisdicionais. Já no caso da Argentina (uma parte da governança é realizada pela Direção Nacional Eleitoral – DNE) e do Brasil é o Poder Judiciário que junta todas as atribuições do processo eleitoral.
No Brasil, a Constituição de 1988, retoma a exposição da Constituição de 1934 em que aparece no topo o Tribunal Superior Eleitoral, depois os 27 tribunais regionais eleitorais, e na base os milhares de juízes eleitorais. As juntas eleitorais têm o trabalho – agora mais simples, com as urnas eletrônicas – de apurar os votos expressos. Com esta estrutura piramidal a Justiça Eleitoral brasileira tem quatro grandes campos de atuação: área administrativa, jurisdicional, normativa e consultiva.
A Justiça Eleitoral tem dois grandes deveres implícitos: publicitar e controlar de forma a tornar todo o processo transparente. O primeiro aspecto a evitar é o da discricionariedade. Aliás, é isso que a Constituição brasileira advoga nos incisos IX e X do seu artigo 93[14] ao preconizar que os julgamentos sejam públicos e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade. Note-se que esta transparência é extensiva a todas as áreas de atuação da Justiça Eleitoral. Realce-se também que a publicidade dos atos tem sido nos últimos anos facilitada pelos novos meios de comunicação e pelas plataformas digitais.
Consideramos importante registrar, que no Brasil, atualmente, a obtenção de informações do Tribunal Superior Eleitoral e dos Regionais, e a consequente divulgação de todos os processos da Justiça Eleitoral, será realizada através da Ouvidoria. De fato, pela Lei de Acesso à Informação[15] e debaixo dos regulamentos da Resolução nº 23.435, de 5 de fevereiro de 2015 do TSE, a Ouvidoria tem a importante missão de estabelecer um elo permanente de contato e esclarecimento, assim como o encaminhamento de demandas entre a Justiça Eleitoral e os cidadãos. Estabelece-se assim uma importante ponte, pela Ouvidoria, entre a Justiça Eleitoral e o cidadão.
Considerações finais
O processo eleitoral brasileiro, se o observarmos sobre o ponto de vista procedimental jurídico, à maneira de Niklas Luhman[16], tem “passado com distinção”. Tal como o autor afirma, as eleições não servem para satisfazer necessidades, mas tão-só para atribuir lugares e competências; todas as questões serão dirimidas depois.
As eleições só fazem parte do sistema democrático se permitirem uma expressão livre da vontade dos eleitores e se o seu resultado for aceite por todos. As eleições fazem parte fundamental da regeneração do sistema político e daí que só terão ignificado se forem periódicas, para que as minorias de hoje possam almejar pela maioria amanhã, tornando vivo o sistema político. Luhman fala-nos da necessidade de incerteza nos resultados das eleições. Sem esta incerteza a eleições não teriam qualquer sentido.
Democracia e processo eleitoral são realidades complementares sendo que uma influência a outra. Claro que a participação, numa sociedade política madura, não se restringe ao período eleitoral, mas é uma das suas expressões mais importantes. Os problemas de falta de participação dos cidadãos na vida política e os índices de abstenção são sintomas de que algo precisa ser mudado. A distância entre o que é prometido na campanha eleitoral, e o que é realizado depois, tem colocado a mesma distância entre eleitores e eleitos.
Desta forma, podemos dizer que do ponto de vista procedimental o processo eleitoral brasileiro está saudável. No entanto, podemos apontar alguns problemas neste processo, nomeadamente a pouca participação ativa do cidadão comum nas campanhas, os fracos discursos dos debates eleitorais e a consequente desinformação associada. Tais fatos parecem indicar uma dissociação entre o aparelho formal do processo eleitoral, nomeadamente a Justiça Eleitoral brasileira e a realidade político-partidária. Entretanto, registra-se que a Justiça Eleitoral cumpre seu papel legal e o constitucional, tendo desenvolvido ferramentas que lhe permitem atingir os objetivos propostos. Podemos, portanto, dizer que, o processo eleitoral, do ponto de vista jurídico não é, com certeza, o elo fraco da democracia brasileira.
[1] Morlino, Leonardo (2009). Are there hybrid regimes? Or are they just an optical illusion?. European Social Science Review, vol 2 (2); pp: 273-296.
[2] Dahl, Robert (1997). Poliarquia: participação e oposição. São Paulo: Universidade de São Paulo.
[3] Cheibub, José Antonio; Adam, Przeworski (1997). Democracia, Eleições e Responsabilidade Política. Revista Brasileira de Ciências Sociais 12(35). Outubro.
[4] Quanto à estes aspetos será de muita utilidade recordar estudos de neurocientistas como Antônio Damásio ou etologistas como Konrad Lorenz ou Desmond Morris. Esta área será, quanto a nós, uma área a explorar pelos cientistas sociais.
[5] Linz, J. J.; Stepan, A. (1996). A transição e consolidação da democracia: a experiência do Sul da Europa e da América do Sul. São Paulo: Paz e Terra.
[6] Norris, Pippa (2012). Making Democratic Governance Work: How Regimes Shape Prosperity, Welfare, and Peace . New York: Cambridge University Press.
[7]Rev. Estud. Eleit. Recife, V.2, Número 3, p.1-103, jul.2018.
[8] Ferreira Filho (1977). Sete vezes democracia. São Paulo: Convívio; p. 18.
[9] Como Murilo de Carvalho na sua obra Cidadania no Brasil de 2002, publicado pela editora Civilização Brasileira do Rio de Janeiro.
[10] Sendo facultativo para cidadãos de idade entre os 16 e os 18 anos e para os maiores de 70.
[11] Os analfabetos e os que não possuíssem 200 mil reis, por exemplo. A lei é assim censitária no sentido da literacia e da capacidade econômica.
[12] www.tse.jus.br
[13] Valls, Maria G. Pedicone de( 2001).Derecho Electoral. Buenos Aires: Ediciones La Rocca.
[14] Por redação da Emenda Constitucional 45/2004.
[15] Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011.
[16] Na obra “Legitimação pelo procedimento”. 1980.Brasília: Ed. Universidade
[author] [author_image timthumb=’on’][/author_image] [author_info]Kamile Moreira Castro
Juíza e Ouvidora Substituta do TRE/CE. Membro Consultora da Comissão Especial de Estudo da Reforma Eleitoral da OAB Federal (2019/2022).Vice-Presidente Nacional do COPEJE – Colégio Permanente de Jurista da Justiça Eleitoral (2018/2020), onde já exerceu o cargo de Presidente Regional (NE) (2016/2018). Professora de Cursos de Pós-Graduação. Mestranda em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa (I.S.C.S.P.). Mestranda em Direito pela Uninove. Especialização em Direito Processual Penal pela UNIFOR. Especialização em Direito e Processo Eleitoral pela ESMEC/PUC/Minas. Membro do CAOESTE.[/author_info] [/author]